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Dionysian Industrial Complex

CPLX 15 : Ghales / K-Torrent / euFraktus X – Enantiodromia

Ao final de 2019, um grupo de músicos brasilienses – incluindo membros da Orquestra de Laptops de Brasília (BSBLOrk) e do Nomade Lab – foram convidados pela Galeria Alfinete para improvisar um diálogo com uma instalação de Milton Marques.

A obra consistia de um disco motorizado, coberto com pó de giz. Conforme o disco girava, era arado e sulcado por um gancho de metal pressionado contra sua superfície. Do lado oposto do disco, a superfície quebrada era reconstituída por um bloco nela apoiado, pesado com balas de alguma arma.

O disco era, portanto, o microcosmo de um eterno ciclo de ordem rompida e reestabelecida. De criação e destruição. De “enantiodromia”, coisas tornando-se os próprios opostos.

Conforme girava o disco, sua lateral degradada era filmada proximamente, e sua imagem, projetada contra uma das paredes da galeria, preenchendo-a. Dessa forma, o microcosmo de destruição contínua foi amplificado para uma escala aparentemente tectônica, tornando-se um visual de intermináveis terremotos ou colapsos glaciais.

Mesmo sendo uma peça amplamente improvisada, para estruturar a performance, dois músicos foram convidados para “compor” duas principais metades ou movimentos, definindo instruções específicas e material para os demais músicos trabalharem.

Estes dois movimentos ou “forças complementares” principais foram compostas por Ghales (Torque) e euFraktus X (KronUs), com o artista sonoro K-Torrent convidado para adicionar novos sons através de um violino distorcido e degradado, na transição entre os dois.

Finalmente, os músicos foram encorajados a retornar do segundo movimento para os elementos da primeira na “coda” final, nomeada Momentum, onde a peça feça um círculo, voltando ao início novamente.

O resultado, capturado e levemente editado e remixado é, em vários níveis, “épico”. Contudo, é também uma confusão. Uma caldeira de ideias e estilos em que se ouve, de fato, um mundo em constante movimento e sujeito a uma destruição criativa. Uma juxtaposição do humano e do abstrato. O orgânico e o eletrônico. Políticoo e geológico. Fragmentos melódicos e ruído.

Ghales inicia torque com a introdução de Leandro Columbi lendo textos através de sua cadeia caseira de efeitos sonoros, transformando o humano através de uma catástrofe de gaguejados, faseamento, modulações e alterações de pitch. O improviso vocal de Leandro é por vezes inteligível, ocasionalmente se assemelha a assovios de pássaros, ou grunhidos graves e murmuros entediados.

Enquanto isso, Ghales e djalgoritmo começam a trazer uma percussão LiveCoded (codificada ao vivo). Uma sequencias de potes vazios de argila que parecem tropeçar continuamente sobre si próprios, falhando a estabelecer qualquer forma de pulso.

Jackson marinho entra com suas interfaces sonoras customizadas: um moedor de carne e uma kalimba.

Gradualmente Ghales e djalgoritmo conseguem trazer o caos a certa ordem, empilhando linhas percussivas, indroduzindo temas como sinos ecoando e regando-os com um chorume de bumbos e pratos. Até que um baixo estrondoso começa a dominar sob os cortes irregulares de ruído, e o mundo torna-se um mutante honky-tonk e uma escada de acordes digitais ascendentes que apunhalam brilhantemente.

De algum local indeterminado, a voz de um apresentador de telejornal Brasileiro se intromete, calmamente reportando turbulências e agitação política. Entretanto, a voz de Leandro assume um coro de “Irresponsabilidade” com a voz repleta de tédio, um fundo de ruídos e apitos agudos atribui ao golpe político contra a presidência de Dilma Rousseff uma qualidade hipnagógica, alucinógena. Como se pudesse ser tudo apenas um sonho ruim.

Ao término da transição, KronUs, de eufraktus X, apresenta-se com um drone pungente. Torrentes sugadoras, rabiscadoras e arredondadas de água de degelo. Os assovios de Leandro sobrevoam um panorama de fraturas e rachaduras geológicas, uma geleira em dissolução. Um silvo de ruído. Guinchos e tons sintéticos erguem-se e caem. Mas as falhas e estouros tornam-se mais evidentes ao som de tiros. Seria uma zona de guerra? Um tiroteio noturno numa favela?
No mundo-disco rotatório de Marques, o bloco que suaviza a superfície rompida é pesado com balas. A violência, então, traria ordem?

Se Marques quiser sugerir isso, os músicos parecem discordar. Conforme a calma imaginária começa a romper-se entre os disparos, os sons tornam-se agitados. O canto de pássaro torna-se mais frenético. Jatos de doppler sobrevoam. Bombas explodem. Lasers. O moedor de carne está em ação. Leandro grunhe como uma horda zumbi. Então percebemos que é o inferno. Um dos círculos mais abafados do inferno de Dante. Onde badala um sino decrépito.

O tempo gravita inexoravelmente para um hino fúnebre. E a geleira derrete. Entropia toma efeito, o som torna-se ruído branco.

Na tela projetada, a terra em pó continua seu colapso desmoronante eterno.

Nunca se pisa no mesmo terremoto duas vezes

E então, a partitura de euFraktus X pede que os outros intérpretes improvisem ao redor da natureza cíclica da história. O pêndulo balançará de volta do período obscuro que vivemos. Sombras políticas serão dispersadas pela luz. [1]

euFraktus convida uma criança, Myrrha Morcelli, de cinco anos, para interagir com as câmeras que controlam seu software musical, trazendo uma energia lúdica à cacofonia. Os sons do inferno se rearranjam em uma dança efervescente e leve. Isso é uma clarineta praticando escalas? E os tiros, seriam apenas fogos revolucionários?

As encantamentos de Leandro tomam ritmo. Novos riachos de som fresco e contorcido tomam seu rumo para fora das rachaduras. A voz de Leandro sofre loops e stutters, e isso constrói energia. Até os sinos adquirem velocidade. Riverrun. Rumamos de volta ao início.

[1] Essa gravação foi feita no desespero político do final de 2019, antes que o grande pesadelo ddo COVID19 tivesse explodido no mundo. Mas escolhemos tomar uma mensagem semelhante de esperança de KronUs. O ano da doença pode ser severo, mas eventualmente sobressairemos.

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