Nos 10 anos desde sua concepção como produto da pesquisa de doutorado de seu fundador e principal programador, Eufrasio Prates, a Orquestra de Laptops de Brasília tornou-se tanto uma figura presente na cena eletrônica e experimental brasiliense, quanto uma frente pioneira ferrenha e desafiante de novas ideias e tecnologias de composição.
A orquestra em si é um coletivo livre e mutante que, ao longo dos anos, agregou uma variedade de músicos – de formação e amadores, eletrônicos e acústicos, experimentais ou apenas curiosos e abertos – que participaram em uma variedade de performances e colaborações.
Muitos desses músicos já apareceram sob outras identidades no selo Dionysian Industrial Complex nos últimos anos. O próprio Eufrasio exorcizou sua identidade heavy-metal , e colaborou como membro do trio Bioborgs e ainda com um supergrupo maior no Enantiodromia.
Apesar disso, é a BSBLOrk que representa e demonstra toda a extensão do cometimento de Prates com uma estratégia vanguardista: sua ambição em empurrar tanto músicos quanto públicos para além das regras e convenções que eles já conhecem e explorar novas formas de se fazer música.
O primeiro aspecto notável é que a BSBLOrk é uma configuração viva para a performance, na qual cada membro tem seus próprios alto-falantes e sua própria fonte de som. A totalidade é mixada “no ar” com todas qualidades acústicas (e, às vezes, fraquezas) do espaço de performance; e todo ouvinte escuta uma versão sutilmente diferente do evento dependendo de sua posição relativa aos músicos. Em algumas performances, a orquestra é espalhada por entre o público até tocando ao redor dele.
Esta forma de trabalhar claramente torna o arquivamento e preservação da música um desafio. Até que a pandemia da COVID levou a BSBLOrk a se adaptar a uma nova forma de performance online, a maioria das gravações foram videos de locais específicos dentro de algum espaço acústico. Geralmente feitos por celular. Em alguns desses casos, você vai ouvir trechos de conversas do público ou barulhos estranhos no meio da música.
Apesar disso, o que é captado é a concretude instantânea essencial da orquestra. Nem a música eletrônica e nem o experimentalismo devem ser considerados para se deduzir que essa música seja um exercício cerebral de abstração descolado do mundo. Muito pelo contrário. A BSBLOrk está inserida no mundo e abarca todos seus aspectos em totalidade.
Isso é particularmente claro quando se considera três aspectos que perpassam muitos trabalhos da orquestra ao longo de seus 10 anos de história: fisicalidade, ludicidade e engajamento político.
O fato mais evidente da performance da BSBLOrk é o uso ostensivo da câmera do laptop como dispositivo de controle e entrada para seu software musical. Os músicos, seja em pé ou sentados, sempre estão em movimento em frente às suas câmeras. Quer seja por gestos sutis com as mãos ou grandes movimentos com os braços, existe uma física necessária para performar essas faixas. Ao mesmo tempo, o programa de Eufrasio, com sua natureza fractal e caótica, traz resistência às intenções dos músicos, forçando-os a lutar contra isso. O mundo físico não é receptivo às tentativas humanas de ordená-lo, e a instabilidade inerente ao software cria e revela esse dinamismo físico tanto ao músico quanto à música. Além do mais, as câmeras muitas vezes estão voltadas para a plateia, convidando e incluindo sua presença e movimento na música, como estímulo e evidência adicional do caos do mundo.
Isso perpassa a segunda dimensão de interesse da BSBLOrk: ludicidade. Muitas “partituras” são improvisadas durante o acordo, ou profanação lúdica, de regras de jogo. No roteiro-partitura de “Pulses” (demonstrado nesse álbum com Pulsos Impromptu (2014)), os músicos rolam dados comicamente grandes para gerar uma sequência randômica de números que determinam mudanças microscópicas de frequência e ritmo no campo de drones e pings. (Esses grandes dados têm sido usados reiteradamente na história da BSBLOrk para dirigir tanto músicos quanto dançarinos colaboradores).
Ludicidade é o que medeia as regras e a quebra de regra no trabalho de Eufrasio. Todo roteiro-partitura da BSBLOrk começa com algum tipo de sistema de regras. Mas oportunidades fortuitas de subverter algumas dessas regras são aproveitadas com entusiasmo. Na verdade, o lançamento desse álbum no Dionysian Industrial Complex já é em si uma subversão. Na medida que o roteiro tem “regras”, isso quer dizer que música deve ser “composta” e “decidida na hora” em vez de uma simples gravação de uma improvisação. E ainda assim, aqui estamos com um álbum que, em essência, é uma gravação de improvisações.
A dimensão final da assimilação do mundo pela BSBLOrk é um engajamento político social: sua música vai desde a sátira política, pelo lamento ambiental até encenações escatológicas. Esta música é feita para significar algo além de meros prazeres e agonias da experiência auditiva.
Mais uma vez, a sensibilidade lúdica é invocada para mediar entre opostos aparentes e às vezes tornar horrores quase suportáveis. Desde a primeira faixa dessa compilação, que já foi tocada em uma ocupação de sem-tetos do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), onde crianças dançaram alegremente em frente às câmeras, encantadas com os sons absurdos que elas criavam; até a última faixa, onde os músicos são envolvidos em um jogo de Mútua Destruição Assegurada fictício, atirando mísseis nucleares virtuais uns aos outros. As vozes de políticos são transmutadas em insetos em Insetos Impromptu #4. No Impromptu Lis Marina, seguindo a instalação da artista de mesmo nome, os músicos encenam os poderes do governo disfuncional, o toma-lá-da-cá e até permitem à plateia suborná-los para que mudem suas “políticas” musicais. Em 2020, quando o mundo estava obcecado com a COVID-19, a BSBLOrk procurou achar beleza no DNA do vírus então recentemente sequenciado, transcrito em forma melódica.
Em outras palavras, a música da BSBLOrk nunca é confortável ou fácil. É sempre SOBRE algo real. E a realidade pode ser tanto feia quanto bonita. A música da BSBLOrk é imprevisível e incontrolável intencionalmente. Ela rejeita e insulta convenções musicais. (Em Improviso Holofractal #20, executada na conferência Understanding Visual Music, o trompetista Ricardo Borgman é lançado em uma batalha de um homem só contra uma saraivada de samples randômicos de música clássica). Até seus próprios integrantes às vezes ficam frustrados pela recusa peremptória de Eufrasio ante qualquer coisa que lembre ritmo e melodia tradicionais.
Mas a BSBLOrk continuamente desafia seus próprios membros e uma boa parte da comunidade de música experimental, insistindo que resistamos à tentação de fazer o fácil e previsível. A BSBLOrk mostra que você pode ter coragem de continuar explorando além das fronteiras, que você pode abarcar tanto as regras quanto a sua quebra, e explorar novas formas de ordem e caos, e finalmente encontrar ali mundos sonoros. Estes são também seu próprio mundo, escutado de uma nova maneira.
Este álbum, no formato de CD físico graças à coragem e apoio do selo estadunidense Public Eyesore, de Bryan Day, é uma celebração e documentação bem-vinda dos primeiros 10 anos da BSBLOrk. Ele nos lembra o que a orquestra conquistou até agora, mas também nos dá um pequeno vislumbre das potencialidades que esperam para ser exploradas nos próximos 10 anos.